EPISÓDIO 1
[seriado em 6 episódios dominicais]
OS DADOS DA MALDIÇÃO
Luiz Antonio Aguiar
Não se brinca com o MAL quando ele pode
saltar fora do jogo e vir brincar com você!
13 de agosto,
Sexta-Feira
e, para completar,
Lua Cheia.
08:00 da Manhã
Nani acordou crente que aquele seria o SEU dia.
Afinal, era seu aniversário.
13 anos.
Com o Fator Gogoia pairando no ar.
... E mais todos os paparicos que esperava receber do pai e da
mãe.
... E o ciumeco que contava causar em
seu irmão mais novo, o Zé, auto-intitulado Monstro, inconformado por ter
de aturar Nani na posição de dono da festa.
...E tudo o mais que todo mundo espera do seu aniversário. Pacote
completo!
Só que não foi nada disso que aconteceu.
Aquele seria o dia mais esquisito que Nani já havia vivido.
Era sexta-feira.
13 de
agosto e Lua Cheia.
Mas, não deveria ser um dia tão esquisito assim.
Mesmo
sendo um feriado meio repentino ...
... (Dani soubera do feriado pela
mãe, na noite anterior, só não sabia que feriado era. E daí? Nem perguntou. Nem
se lembrou de perguntar. Feriado é sempre mais do que ótimo, ponto final. Sabia
somente que não teria colégio naquele dia, nem os pais iriam trabalhar, o que
era legal porque estariam livres para trata-lo feito príncipe ...
... Pelo menos, foi o que ele
acreditou que aconteceria.).
Afinal, dia do aniversário da
gente é para ser D++++.
Não deveria ser chamado de “esquisito”.
Não, não deveria.
Mesmo
ele fazendo 13 anos nesse aniversário.
Isso é
o que pensava Nani, tentando entender onde tinha se metido a sua família, justamente
naquela manhã, quando ele acordou e saiu do seu quarto crente que iria receber
abraços, talvez um presente antes da festa e, melhor de tudo, o grunhido de ciumenta
infelicidade do seu irmão caçula, mas...
Em vez
disso, encontrou tudo quieto, tudo silencioso.
Como se
não houvesse ninguém no apartamento.
Mas,
como faziam isso com ele? Abandonado no dia de seu aniversário? Será que
esqueceram?
- Não
acredito! – exclamou, chateado. – Eles devem estar escondidos por aí, esperando
eu sair pra pularem em cima de mim gritando “Surpresa!”. Só pode ser!
Deu uma
geral na casa. Repetiu. Depois, busca pente fino. E nada!
- Mas,
que sujeira! – gritou.
Seu
grito ecoou sem resposta pelo apartamento.
Não ia
ter paparico. Nem café da manhã especial. Nem festa. Nem o prazer de flagrar o
ressentimento do Monstro, naquele dia.
Não ia
ter nada. O dia tinha virado nada.
Era
verdade, ele que engolisse. Que se conformasse. A família havia largado dele no
dia do seu aniversário. Foi-se. Sumiu desta dimensão. E lá estava Nani,
ruminando sua mágoa, e sem saber para onde ir nem o que fazer.
Ele, o único habitante do
apartamento vazio.
Ou, talvez, não fosse o único.
Grande Bazar,
Istambul, Turquia,
± 25 anos antes
O mercado de rua – suk, em árabe - de Istambul é um labirinto que, segundo acreditam,
cresce um pouco mais a cada noite. Somos admitidos nele por insuspeitas
entradas. São portões, num fundo de rua, entre um paredão e outro, sem grande
destaque no cenário urbano, e guarnecidos de grades de ferro. Nada que nos faça
prever o que há ali dentro. E, quando vemos, somos envolvidos por uma cidade incrustada
nas entranhas da outra cidade. Istambul é a hospedeira dessa criatura.
O difícil é saber quem comanda
quem.
Não há registros precisos de
quando o Grande Bazar começou a surgir, como um agrupamento de pequenos
negócios de rua. A história oficial nos fala do século XV, mas, há lendas que
mencionam um mercado – que pode ter sido o Grande Bazar original – em
Constantinopla, como se chamava Istambul, quando era a capital do Império
Romano, no século IV.
E, antes disso, talvez... Mas,
ninguém sabe. É uma memória que se perdeu.
A área central do Grande Bazar é
a mais antiga. É também a mais escura, onde as vielas são mais estreitas, as
lojas – tendas, stands precários – são menores e vendem as mercadorias mais
bizarras.
Lucio era naquele tempo um jovem
arqueólogo brasileiro, deslumbrado com tudo o que pudesse cheirar a mistério do
passado. Era natural que fosse a Istambul - onde a história da civilização
humana viveu momentos decisivos – para conhecer o museu arqueológico de lá, um
dos mais fantásticos do mundo. Mais natural ainda que desse um pulo no Grande
Bazar.
No presente, iremos reencontrá-lo como dono da loja de
games e objetos nerds – a Além da
Imaginação. E será conhecido como Lúcio Sorriso.
E Sorriso é o apelido debochado que
os frequentadores da loja lhe deram, justamente porque se trata, nos dias de
hoje, do cara mais mal-humorado que já se viu atendendo o público. Mas, não
tinha essa marca azeda, naqueles anos, principalmente em sua exploração pelo
Grande Bazar. Pelo contrário, estava animadíssimo por estar conhecendo aquele
cenário de histórias mágicas.
Podia-se dizer que era um cara que sempre
tinha a esperança de encontrar algum tesouro oculto “nas dobras e disfarces do
tempo” (a expressão é de um ensaio que ele havia escrito na universidade).
Sua transformação talvez (ele não terá o hábito de falar
sobre isso) tenha a ver com algo que irá acontecer exatamente naquele dia em
que atravessou o portão de entrada no Grande Bazar. Ele havia se distraído apreciando
objetos pitorescos, farejando os aromas de um outro mundo – que pairam em toda
a Istambul, mas é ainda mais impregnado e difícil de decifrar no Grande Bazar –
e, quando viu, havia se metido na parte
mais antiga do suk. Estava diante de uma pequena tenda, onde entrou.
Nunca saberia dizer o que o tinha
atraído ali. Não se tratava de uma tenda diferente; pelo contrário, tinha um
jeito ordinário, miúdo, era apertada, algo imersa na penumbra, e o cheiro ali
dentro o fez se lembrar dos fundilhos de alguns camelos que havia montado no Egito,
semanas antes.
Talvez, tivesse na cabeça
demorar-se apenas alguns minutos. Ou segundos. De fato, na hora, não diria que
fora atraído, mas que entrara ali como poderia ter entrado na tenda ao lado, ou
em nenhuma. Pensar em algum tipo de atração
foi algo que veio muito, muito depois.
Era uma tenda de lâmpadas de
azeite. Havia as de latão, as de cobre, as de estanho, todas, mal ou bem,
reproduzindo o que um turista imaginoso pensaria em comprar, como se estivesse
levando uma Lâmpada de Aladim. Mas, o homem que o recebeu dentro da tenda logo
desfez o encanto:
- Não há lâmpadas encantadas aqui
– disse o sujeito sorrindo, em inglês.
Túnica branca, calças verdes, muito
largas e ambas de uma seda amassada, típica
da região. Calçava sandálias de couro cru. Tinha mais de sessenta anos, mas
Lúcio não foi capaz de lhe precisar a idade. Pele bastante clara, olhos entre
verdes e cor de tijolo, cabelos grisalhos, presos no alto da cabeça num coque,
barba e bigodes compridos. O que imediatamente chamou a atenção de Lúcio foram
as tatuagens que ele tinha nas costas das mãos.
E, em ambas as mãos, o mesmo
desenho de uma cobra engolindo o próprio rabo. Uma cobra com olhos vermelhos,
faiscantes, expressão voraz e absolutamente privada de sentimentos. Puro
instinto e ferocidade. Tratava-se de um
símbolo milenar, e Lúcio já havia esbarrado com ele algumas vezes. Era chamado
de Uróboro.
O dono da loja apresentou-se como
Mehmedi. Educadamente, como todo lojista em Istambul, insistiu que Lúcio, mesmo que não lhe interessasse comprar
nada, se sentasse nas almofadas, que cobriam um recanto da tenda, e tomasse chá
com ele. Foi o que o jovem arqueólogo fez, colocando de lado sua mochila de
lona.
Lúcio já havia recusado inúmeros
daqueles convites, de outros
comerciantes do Grande Bazar, mas resolveu aceitar aquele. Justamente aquele.
- Não estou mesmo interessado em
lâmpadas – lamentou Lúcio.
Mehmedi sorriu e serviu o chá
numa taça. Lúcio aspirou o perfume do chá – era delicioso. Teve uma sensação de
bem-estar absoluto, naquela tenda. E foi assim, relaxado, que conversou com
Mehemedi. O comerciante fez questão de saber de onde ele era e o que viera fazer na Turquia:
- Turismo... Explorações ...
Estudo ... – respondeu Lúcio. – Um pouco cada.
- Ah, meu amigo. Então, o suk é o lugar certo. E se não vai mesmo
comprar uma lâmpada, talvez eu possa lhe oferecer uma outra coisa.
Sem esperar a resposta de Lúcio,
Mehemedi curvou-se sobre uma pequena mesa, bastante baixa, entre as almofadas –
que Lúcio, bem mais tarde, consideraria que estivera ali, arrumada, aguardando
somente a oportunidade certa. Ergueu então uma toalha de seda negra, sob a qual
havia uma pequena caixa de madeira escura. Havia algo gravado em dourado na
tampa, que, ao olhar de Lúcio, pareceu, à primeira vista, um “D”. Olhando
melhor, reparou que a linha que formava a letra era o corpo de uma serpente que
também engolia seu rabo, na base do “D”. Sentiu um calafrio e certa aversão
àquela figura.
Mehemedi abriu a caixa, e dentro
dela havia três dados de bronze.
Por todo o tempo, acompanhando os
gestos de seu anfitrião, Lúcio ficara como que magnetizado pelas tatuagens nas
mãos de Mehemedi, como se as serpentes também se movessem. Na hora, sorriu,
desdenhando a ilusão, e tentou focar a vista. Mas, como se repelindo sua
reação, sentiu uma pressão crescente nas têmporas, e seu coração começou a dar saltos
repentinos.
- O que são? – perguntou Lúcio.
As faces dos dados não tinham números, mas símbolos que ele desconhecia.
- Um jogo... – respondeu
Mehemedi.
- E como se joga?
- Ah, sim, as regras. Estão
perdidas. Ninguém mais as conhece. Quer pegá-los? – perguntou o comerciante,
suspendendo a caixa na altura das mãos de Lúcio. – Veja como rolam na sua mão
como se ganhassem vida.
Lúcio deu uma risada, acreditando
que o lojista procurava intrigá-lo para
conseguir vender-lhe os dados. Apanhou-os e os rolou de uma mão para outra. O ruído que
faziam, ao se chocarem, lhe lembrou o guizo de uma cascavel.
-
Parecem bastante antigos... – observou Lúcio. – Devem valer muito.
- Fique com eles, meu amigo.
- Minha nossa! Imagine se tenho
dinheiro para algo assim.
- Um presente!
- Como? – surpreendeu-se Lúcio.
Mas, logo recuperou-se. Pensou e replicou: - Não, não posso! – disse,
devolvendo os dados à caixa. – Não devo aceitar um presente tão caro. Além do
mais, parecem ser uma relíquia... Com valor arqueológico. São autênticos, não
são?
- Únicos!
- Bem, as autoridades não vão
permitir que saiam do país.
- Não creio que o jovem vai ser
incomodado por isso ... – riu-se Mehemedi.
- Mesmo assim, não, obrigado –
disse Lúcio, levantando-se.
- Pelo menos, veja o que mais
tenho aqui na loja. Não quer um lenço de seda? Tenho pequenas bijuterias feitas
de osso de camelo por um preço bastante razoável.
Acabou não comprando coisa
alguma. Saiu apressado e sentiu-se melhor do lado de fora. Se bem que...
Na saída, estranhara algo, que
passou de relance por seus olhos, mas só depois se deu conta do que era. Só
depois, no hotel modesto onde se instalara, descobriu, dentro da sua mochila, a
caixa de madeira preta, com o uróboro na tampa – era mesmo uma preciosa gravação a ouro. Os
três dados estavam ali dentro. Então, se deu conta do que o perturbara, quando
se despediu de Mehemedi, apertando sua mão na saída da tenda. Ainda voltou ao
Bazar, buscando pelo comerciante de lâmpadas, para lhe devolver a caixa e os
dados, mas, enredado no labirinto de tendas, sem recordar ao certo as ruas que
percorrera antes, jamais conseguiu encontrá-lo.
Pensou em entregar os objetos às
autoridades, ou talvez ao Museu, mas teve receio das desconfianças, da
conhecida brutalidade da polícia local, que não seguia o preceito de que uma
pessoa é inocente até que se prove em contrário. Seria acusado de roubo, mesmo
que fosse um ladrão arrependido, devolvendo as relíquias. E, o tempo todo,
perseguiu-o a certeza de que, de todas as alternativas, a pior, a mais
arriscada, a que pareceria mais criminosa foi a que escolheu. Sabia que seria
atirado na cadeia – se fosse pego no aeroporto - sob a suspeita de ser um contrabandista
de antiguidades, algo odiado em países como a Turquia, que tanto sofreram com
pilhagens estrangeiras sobre seu patrimônio arqueológico. E sabia que ninguém
se preocuparia com a formalidade de contatar a embaixada brasileira para
informa-la da detenção. Ele simplesmente sumiria. Era o risco.
No entanto, fez o que fez, e
talvez o tenha feito perturbado pela visão da mão de Mehemedi, de ambas as
mãos, no momento em que deixou a tenda, e se na hora não entendeu o que o incomodara,
horas depois, a visão se tornara evidente. As serpentes, os uróboros tatuados
... haviam desaparecido das costas das mãos dele.
Como se tivessem seguido os
dados.