Episódio 01
A HORA DAS SOMBRAS
A HORA DAS SOMBRAS
Luiz Antonio Aguiar
Úgui já quase não conseguia
correr. Seu corpo inteiro doía. Mas, não
tinha alternativa. Se fosse alcançado, não escaparia. Seria linchado. Chefe
deposto tinha de morrer. Era a lei da sobrevivência do bando.
O pior para
o garoto era estar descalço e atravessar os monturos de escombros e lixo,
repletos de cacos de vidro, pontas de metal e de madeira. As solas dos seus pés
estavam em tiras, deixando um rastro de sangue. Cada passo, agora, era mais uma
ferida aberta.
Náique
e seu grupo haviam caído de surpresa em cima dele. Úgui não tivera tempo de
pegar nem seu furador, nem a socadeira, nem os preciosos tênis que
ele próprio havia reforçado. Já fora sorte escapar com vida.
“Como
foi que não desconfiei que iam me pegar? O Náique! Claro, tinha que ser ele!
Tava na cara! Cochichos! Olhares de
lado! E eu, bobão! Estava quase dormindo quando vieram pra cima de mim!
Bobalhão, eu! E bobalhão morre!”...
Não
adiantava mais irritar-se consigo mesmo. Tinha é que aguentar os rasgões nos
pés. E a dor das pancadas e dos golpes que sofrera. E a fraqueza, cada vez
maior. Respirar doía! Tudo doía.
E tinha
de correr. Esquecer que doía. Correr!
Por
momentos, afundava até acima das canelas em fossas daquela lama descorada e
gosmenta que recobria a paisagem. Parou, sem fôlego. O fedor azedo de lixo
velho e a névoa ácida que embaçava o ar penetraram profundamente nos seus
pulmões. Seu peito ardeu. Pensou na possibilidade de se esconder. Esperar de tocaia. Agarrar um
dos garotos e tomar os tênis dele.
Mas,
não ia dar certo...
Havia
treinado seu bando muito bem. Dificilmente, algum deles ia ser idiota de se
afastar dos outros, sozinho. Daí, bastava um grito de alerta e viriam todos.
Úgui estaria perdido.
Tentou
escolher onde pisava. Mais difícil ainda. A escuridão das ruas não o deixava
ver quase nada. E ele já perdia terreno. De longe, chegavam os berros dos
garotos, procurando seus rastros na massa de lixo.
Úgui precisava
encontrar um esconderijo onde os garotos não iriam procurá-lo! ...
-
Vocês têm de parar de ir no Roxy! Tem um vampiro morando nas ruínas.
-
Um vampíro! – admiraram-se os garotos. A palavra lembrava alguma coisa: dava
medo. – O que é um vampiro?
-
É... uma sombra! – arriscara Úgui. – Se alguém chega perto, ele pega ... e
transforma o cara em sombra também.
-
Você está inventando, Úgui! Isso não existe! – desafiou Náique, cada vez mais
atrevido.
-
O pessoal de antigamente acreditava em
vampiros, Faziam até filmes sobre eles, para todo mundo ter cuidado. Eles
sabiam das coisas. Vi um cartaz lá na parede do Roxy e consegui ler... VAMPIRO!
Vocês precisavam ver o retrato dele. Estava com fome! Muita fome! E vampiros não
morrem. Nunca. Ele ainda está lá!
Úgui
era um dos únicos garotos do bando que sabia soletrar. Havia aprendido com o
chefe que o antecedera. Com ele, aprendera também histórias de como a cidade
fora. E de como vivia o pessoal de antigamente.
Algumas dessas histórias, ele sabia repetir. Outras, lembrava mais ou menos,
meio misturadas, faltando pedaços.
Mas,
nunca confessava quando não sabia . Ia
inventando. Uma das habilidades de que um chefe de bando precisava era saber
contar histórias. Principalmente sobre como fora a vida antes. Por isso, ele sempre arrumava um jeito de contar a história.
De explicar, de dizer o que era o quê, de responder as dezenas de perguntas que
o bando trazia, todas as noites para as reuniões em volta da fogueira, sobre o
que tinham encontrado e descoberto em suas explorações.
-
Como foi que esse vampiro nunca pegou ninguém até hoje? – insistiu Náique.
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(01/continuação...)
-
Quem disse? – replicou, Úgui. – E a Bárbi, que sumiu lá naquelas ruínas? Só
deram pela falta dela no caminho de volta. A gente nunca descobriu o que
aconteceu.
-
Ela deve ter se perdido dos outros! Daí, um bicho-blindado pegou ela.
-
Não foi isso! É o que tô querendo contar pra vocês! – Úgui tomou fôlego e
fechou a cara. – Vi a sombra da Bárbi passeando na parede junto do cartaz. –
Todos os garotos tiveram um arrepio. – Foi o que aconteceu com ela. Vai ver,
entrou lá sozinha. Agora, virou sombra. Eu vi! Acho que ela estava tentando
avisar a gente de que o vampiro esteve dormindo, mas agora acordou. Daí, uma
coisa gelada chegou perto de mim. Parecia vento. Mas, estava viva. Tive de correr pra conseguir
escapar. Tô avisando...! Quem não quiser virar sombra, não deve voltar lá.
Úgui
pretendia somente impedir que os garotos menores se metessem dentro do velho
cinema, que estava ameaçando desabar de vez. Costumavam afastar os destroços de
concreto que bloqueavam a entrada e abrir buracos para chegar à plateia. Então,
ficavam o dia inteiro sentados nas poltronas arrebentadas, no meio do mofo e da
poeira. Contavam histórias uns para os outros, que imaginavam estarem passando na tela que já não existia,
havia tempos. E brincavam de ser garotos de antigamente, como os que Úgui
contara que costumavam ir ali. Para “verem coisas”...
“Coisas
animadas, engraçadas, coloridas...” Até mesmo quando a cidade já havia se
tornado quase totalmente cinzenta. Havia algo ali que os garotos não
compreendiam, mas gostavam de sentir.
Muita
coisa ainda podia ser encontrada no interior de prédios que nunca haviam sido
explorados nem pelos bandos, nem pelos mendigos. Por isso, os garotos viviam
procurando fendas, buracos, entradas. Mas, era difícil encontrar uma passagem,
através das fachadas desmoronadas. Precisavam procurar muito, e contar com a
sorte.
Foi assim que
descobriram o cinema. E foi Úgui quem explicou o que era aquilo, o que
acontecia ali. Lembrava-se de seu antigo
chefe contando algo sobre lugares assim.
Daí voltou sozinho, noutra noite. Percebeu que
o interior tinha um andar de cima. Era difícil alcançá-lo. As infiltrações e
infestações de cupins haviam feito os degraus da escadaria ruírem anos
antes. Algumas vigas do teto tinham
enormes rachaduras. O garoto precisou escalar os escombros para chegar lá.
Então, viu na
parede o caxilho, com o vidro quebrado,
faltando pedaços. Por baixo da poeira, Úgui enxergou dois pontos brilhantes.
Vermelhos, parecendo pequenas chamas. Fogo gelado. Os olhos do vampiro.
Eram estranhos. Quando limpou a poeira,
parecia que aqueles olhos se cravaram nele. Acompanhando-o, sempre.
E havia sangue
escorrendo dos cantos da boca do monstro. Úgui se lembrava dessa palavra, monstro. Soube imediatamente que a
palavra dava nome àquilo que estava vendo. Monstro.
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(01/continuação...)
Os olhos do monstro ainda o perseguiam.
Famintos. Úgui precisou olhar para trás e dar uma espiada em volta para se
assegurar que nada estava se aproximando dele pelas costas. A luz da sua vela
desenhava compridos dedos nas paredes, querendo agarrá-lo. Lá do meio da
escuridão, vinham ruídos de goteiras, estalidos de dentro das paredes, lascas
de teto sempre despencando. Ratos.
Úgui fugiu
dali o mais depressa que pôde, naquela noite.
Sobre seu
medo, não contou nada ao bando. Mas, o estado do prédio o preocupou. O garoto
que era chefe do bando antes de Úgui fora esmagado num desabamento, quando
explorava um prédio desmoronado.
Mas, agora,
graças áquela história, tinha um lugar para passar a noite.
Com medo de
serem pegos pelo vampiro, a maioria dos garotos não entraria no Roxy. Mas, e se
Náique lhes desse coragem?
Precisava
arriscar. Talvez, excitados como estavam, não se lembrassem de procurá-lo ali.
“Mas... e o
vampiro?...” O pensamento atravessou sua mente. Intruso. Intrometido.
“Bobalhão!”, xingou-se. “Com medo da minha própria mentira...!... Mas bem que eu queria... saber o que é um
vampiro!”.
Úgui se enfiou
por entre os destroços e vergalhões enferrujados, e conseguiu encontrar a
passagem.
“Não importa...
melhor do que morrer linchado!”.
A gritaria do
bando anunciava que eles já estavam bem perto dali.
(fim do episódio 01...
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